Relato de parto
Lisboa, 20 de novembro de 2018 (quase 10 meses depois)
Aqui me encontro às vésperas dos 32 anos, um cabelo longo e grisalho aos poucos, sentada ao pé de uma mesa vermelha que ocupa um quarto amplo, iluminado, e vazio. Acabamos de nos mudar para Portugal. Foram nove meses (39 semanas +1 dia) de gestação e mais nove meses de neném no colo no quentinho do Brasil.
Engravidei em Portugal, lembro bem de quando fizemos o exame de urina: o resultado positivo: nós ficamos felizes! surpresos e naturais, assustados e descontraídos. Era tanta fé na vida e no movimento, que não havia o que questionar. Vida segue! Eu viajei com as amigas pela Costa Vicentina, fui pro Vipassana na Espanha, fomos juntos por um mês pra Polônia e para uma temporada no Brasil com parada no Marrocos! Dias no Rio de Janeiro, reencontro com os pais em Uberlândia e reconhecimento de área dessa cidade que virou cenário de uma história intensa. Reencontros em Belém e Nazica, Alter do Chão, Brasília e a resistência enorme do Pi em voltar para Uberlândia. Ele achava que viveríamos uma aventura exploratória no brasil selvagem e eu querendo conforto, proteção, roupa cheirosa e comida quentinha de mamãe Solange.
Eu, que havia saído de casa há 13 anos, de repente volto com um polonês e uma barriga. Às voltas com a adaptação em casa, comecei a busca por apoio ao parto, lugar para morar, pessoas para trocar em tantos sentidos. Tudo acontecendo, fluindo, encontrando, embora Pi só visse estagnação. Imagino que para um homem pai virgem, que não percebe no corpo as transformações de um filho por vir, seja mesmo imprevisível demais essa história toda de maternidade. Eu, loucamente sensível, me deixei abalar demais pelos seus (nossos) conflitos. Ele só queria ir embora de qualquer jeito, pra qualquer lugar e hoje eu vejo o quanto foi importante estar ali e persistir nessa decisão que era a única que me fazia sentido.
Visitei médicas particulares, visitei hospital público humanizado, pra então acreditar em minha intuição primeira: queria parir em casa! Quer dizer, na casa que havia na época, que era a casa de meus pais. Por um lado havia a resistência dos meus pais que achavam tudo aquilo muito estranho, por outro, o Pi, que sonhava receber seu primogenito no rio que desce das montanhas mágicas: e eu ali buscando o meu equilíbrio entre tantas expectativas e medos. Me encontrei com grupo de mulheres, visitamos uma família de 15 filhos em que todos nasceram na casa da fazenda, e os filhos dos filhos, fiz eutonia, médico chinês pra aliviar o peso da coluna, organizamos milhares de documentos e nos casamos no cartório, fizemos um almoço-festa pros amigos e parentes, compramos um carro, construimos uma casinha (só um quarto) no sítio de uns amigos, fiz terapia individual, fizemos terapia de casal, capoeira. foi um ano, mas foram tantos.
No fim da gestação, as parteiras notaram que minha barriga já não crescia muito e pediram um ultra-som pra conferir o tamanho do bebê, chegaram a dizer que o bebê poderia estar em sofrimento e toda uma cena que me deixou super preocupada e insegura. Fiz um ultra-som que deu ruim, e elas indicaram repetí-lo com um médico conhecido delas. tudo isso levou uns dias, e que se o bebê nascesse nesses dias, eu teria que ir para um hospital: o que eu já tinha decidido que não queria. Nesse processo aconteceu também que minha sobrinha Maria Eduarda se engasgou com um pedaço de carne, teve parada respiratória e teve que ir pra UTI em Porto Velho. Todos em apuros! Em uma sexta feira eu fiz o novo ultra-som e o resultado foi excelente, as parteiras disseram que se seguisse assim eu poderia sim ter o parto em casa. Nesse momento eu liguei pra minha mãe pra contar a novidade e me mandei pra cachoeira (Sucupira) pra agradecer. Cruzei o rio, subi nas pedras, me deitei sob o sol e me deixei invadir toda por ele e pela água e o ruído dela. Agradeci, senti, pedi. Dona Sol, com o coração na mão pelo meu irmão, comprou um passagem e se mandou pra Porto Velho naquele dia mesmo, sem antes dizer à minha barriga: espere pela vovó!
Eu estava de 39 semanas. No sábado (27.01.2018) acendi uma vela amarela do amor de oxum, pedindo pela saúde de Duda e não só. Desapeguei da ideia de ter uma doula (eu estava em duvida entre duas, e se queria mesmo ter uma). O que mais eu fiz não me lembro. Mas me lembro que o tampão saiu naquele dia, um dia depois que “vovó” foi embora. No domingo (28.01.2018) novamente outro pedaço do tampão e nós saímos pra resolver os últimos detalhes antes do parto (que até então eu não acreditava que estava tão perto): comprei comidas que queria ter durante o parto e depois, peguei um tapetes com uma amiga, instalei a piscina na varanda do quarto.
Pela noite comecei a sentir as contrações, que eram frequentes mas não faziam dor. avisei as parteiras pelo grupo no whatsapp “malu vai parir!”. passei a noite sentindo a evolução disso, a dor veio chegando, eu procurava posições mais confortáveis para estar. descobri que deitar entre as contrações causava uma dor insuportável quando ela voltava, usei o chuveiro algumas vezes e foi pra bom pra ajudar a relaxar, mas também me relaxou demais e deu uma certa indisposição. o pi descansava, e de vez em quando dava uma sacada na situação. quando estava amanhecendo falei no celular com minha prima, com o paulo e com as parteiras, que acharam por bem me visitarem.
Uanisleia chegou as 7 da manha, tomou nota da barriga, me fez perguntas, instalou seus materiais e equipamentos no nosso quarto. foi aí que meu pai soube o que estava acontecendo. pedi pra cancelar a visita da tia, o que foi feito, e pedi pra cancelar a vinda da Lenita, o que ele não concordou e seguimos. Acho que foi por essa hora que começou o parto ativo, em que já era bem difícil me comunicar, e eu perdi a noção do tempo e de todo o mais. pedi pro pi parar de me chamar e também pra ele não me tocar entre as contrações, pois me desconcentrava. durante as contrações ele fazia massagem no meu quadril, o que ajudava bem. Uanis percebeu que eu estava fazendo movimentos dignos da fase expulsiva do parto e propôs que eu me sentasse na banqueta do parto e isso me causou imensa dor! não aguentei muito ali. as posições que eu mais gostava eram: ajoelhada na pia do banheira e de quatro na bola de pilates. eu tinha feito uma playlist para o parto que foi mesmo uma bela companhia!
as 9h chegou a Luana, e nesse ponto o processo já estava avançadíssimo. bem, eu não sei dizer exatamente quando começou o ativo ou o expulsivo. me lembro de estar reclinada na bola de pilates sendo puxada por Uanis por um pano, essa força de puxar que eu fazia me ajudava bastante. nesse momento a dor era mesmo insuportável, eu sentia que a cada contração eu ia morrer ou me quebrar em alguns pedaços. as mulheres me davam algumas sugestões bem pontuais, mas me deixavam bem a vontade. em nenhum momento me tocaram, então não tinha ideia de como estava minha dilatações. me sentia insegura, me perguntava se estava fazendo “certo”, se o processo era mesmo esse - eu nunca tinha parido tampouco visto alguém parir. acho que queria mesmo um parto assim: eu mesma, poucas pessoas, e por isso não tive doula e minha mãe por perto: apenas os necessários, e da parte emocional cuidava/vivia eu. assim como num ritual, ou em uma cerimônia de ayahuasca, somos nós mesmos os nossos mestres, não há a quem recorrer. eu imaginava o parto algo desse tipo. e foi.
eu estava confiante no processo do parto, no lugar em que eu estava, e nas pessoas que estavam comigo para me dar suporte, mas não sempre. a dor era imensa. eu gritava a cada contração. certa música me irritou tanto. sentia que contrações vinham e não faziam efeito, o processo não evoluia. eu sabia que só a dor traria o bebê, ao mesmo tempo não conseguia deixar que aquela onda tomasse conta do meu corpo por inteiro. por medo. medo de me quebrar, rasgar, medo de doer demais. entre uma contração e outra, maria bethânia entrou cantando “é o mar, é o mar, fé, fé.. xorodô…”, a mesma musica que fala de todos os nomes de iemanjá, a saúda e honra. essa música naquele breve momento de descanso, inexplicavelmente me encheu de confiança e sobretudo, coragem. a coragem me vestiu de dourado e eu não havia mais medo. respirei profundamente, senti meu corpo, abri os olhos como fazem os guerreiros pintados antes da batalha. eu era toda coragem e estava sentada na banqueta do parto, neném coroado, e o pi sentado atrás de mim, me dando suporte. na próxima contração a bolsa das águas se rompeu, e logo, vi entre as minhas pernas uma bola vermelha de sangue que tinha uma orelha: era o meu bebé. tão óbvio, tão esperado e tão mágico. a parteira disse que a próxima contração demandaria de mim mais trabalho, eu me perguntava “e se não sair na próxima, como pode o bebe ficar assim meio pra dentro meio pra fora?”, depois eu descobri que não havia problema nenhum. eu estava coberta de coragem e ocitocina e nem sei mais o que, que nos presenteia nesse momento de maior abertura da pelve (e espiritual) de nossas vidas. eu gritei e o pi também. na próxima contração todo o corpo do bebé saiu, bem rápido, gostoso, molhado e ele veio direto pro meu colo, com um chorinho que já era a voz que eu escutaria todos os dias seguidos daquele. eu logo pedi que chamassem meu pai, e ele entrou, emocionado, vóz trêmula e rosado, me olhou nos olhos e me deu um beijo na testa! ele perguntou “‘é o que?”, eu nao entendi a pergunta mas alguem me explicou. verificamos: uma menina!
fomos pra cama para a dequitação da placenta, o que foi rápido e indolor. toda vermelhinha, dei a ela de mamar, e também tocava música para iemanjá! escolhemos o nome: viva Inaê!